domingo, 16 de outubro de 2011

Índios.

O vermelho do urucum cobriu me o corpo; sumo de jenipapo e fuligem foram a tinta escura dos contornos desenhados das escamas do pirarucu.
Ajeitei o cocar e abracei a borduna e me juntei à roda da fogueira para a dança da onça.
Pé direito era o do passo largo ao lado, o esquerdo palmilhava à frente, mais econômico, e a excitação começava a se revolver no peito enquanto os gritos e esturros acrescentavam o sentido da dança.
O fogo ardia, a euforia das ervas e a expectativa da morte faziam o corpo se espasmar ao som das maracas. A saliva escorria pelos lábios.
 Agitávamos todos as armas ameaçando sombras e espíritos maus, enquanto fumávamos a xanduca para congregar à nós as forças de ancestrais e deuses favoráveis à tribo.
A fogueira resistiu dia e meio, e nos lançamos à peleja.
Apuã levou três almas em sua aljava, sua borduna esmagou dois crânios, partiu braços e costelas; Iberê manejou bem a zarabatana e o veneno ceifou seis vidas, mas das outras mortes nada soube, pois meus olhos se moviam para o maxilar que partia com um golpe certeiro do meu tacape, e para o tronco cevado que minha faca de pedra rasgava.
No fim do ajuste cortamos, como de costume, bambus e cipós para atarmos os corpos dos guerreiros mais dignos. Enterramos as crianças e guerreiros medíocres para não atrair feras ou insetos.
Tomamos então alguns carvões da fogueira de guerra e erguemos uma outra ainda maior, com troncos selecionados e recomeçamos os festejos, mas agora como um tributo místico à mais uma vitória.
A tribo dos Puijins era brava e poderosa, seu animal era a ariranha.
Dançamos as mesmas danças enquanto os anciões preparavam o banquete de corpos para nos fortalecer as mãos e espíritos, e ao esturro do homem onça nos vimos todos no frenesi de uma luta pelos bocados dos mais fortes.
Venci Ajagunã e Airy em uma disputa pelo coração de um poderoso, e o mastiguei absorvendo emoções e força daquele corpo.
Retornei à oca desfalecido pelo cansaço da guerra e festejo da vitória. Procurei sentir o vigor do guerreiro fluir em mim; mas não havia nada diferente...
Todos se gabavam dos novos poderes adquiridos dos adversários subjugados, como arma de prestigio e intimidação...
E eu fiz o mesmo.


Anderson Dias Cardoso.

4 comentários:

OceanoAzul.Sonhos disse...

Anderson, de facto os seus textos têm o poder de nos "abanar"...este é mais deles.

Acho incrível o modo como escreve tornando praticamente real o acontecimento.

Boa semana para si também.
abraço
oa.s

Vampira Dea disse...

Total absorvição e gostei da forma como tirou o alo de anjos dos índios, são gente e como gente sujeitos a tudo. Beijos meu lindo, boa semana.

raylsonbruno disse...

Começo, meio e fim num ritmo perfeito. Gostei da naturalidade como narrou o canibalismo, exatamente como imagino que um índio faria... Ótimo texto, Abraço!

Penélope disse...

Pois sim, amigo.
Gosto de passar por aqui.
Nem sempre comento, mas leio.
Desta forma supera o escrivão do Rei...
Pois a intensidade das batalhas foi admirável e bem narrada.
Que bom saber escrever assim.
Abraço

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